O futuro do futebol chinês pode ser «made in Portugal»
Ao longo das últimas décadas os portugueses habituaram-se a ler a expressão «made in China» nos mais variados produtos. A balança comercial que liga os dois países cede claramente ao peso do lado asiático, mas existem mais-valias portuguesas que ainda atraem investimento chinês.
É o caso do futebol, desporto em que Portugal está no pelotão da frente, ao contrário da China. Mas tratando-se do país mais populoso do mundo, o potencial impressiona só de imaginar. O governo está empenhado em explorá-lo, e por isso avançou recentemente para uma reforma que tornou obrigatória a prática de futebol nas escolas.
O caminho é longo, no entanto, e para crescer é preciso aprender com os melhores. Foi nessa perspetiva que, em 2011, nasceu em Portugal o Oriental Dragon Football Club. Uma equipa composta apenas por jogadores chineses (para já), que vieram para terras lusas desenvolver as suas capacidades, às ordens de uma equipa técnica lusa. Um projeto que tem vindo a evoluir e que se prepara para dar mais alguns passos nesse sentido.
O presidente do clube é Qi Chen, empresário chinês que trabalha há muitos anos em Portugal, e que em 2006 mediou a transferência do compatriota Yu Dabao para o Benfica (o avançado está agora no seu país, a representar o Beijing Gouan).
«O objetivo deste projeto é aproveitar o conhecimento português na formação e melhorar o conhecimento técnico e tático dos jogadores chineses, e assim ajudar o futebol chinês a progredir», explica-nos o empresário, que lidera a empresa Wsports Seven.
A escolha de Portugal está relacionada com a qualidade dos treinadores nacionais, reconhecida no estrangeiro, mas também com o contexto cultural. «Os portugueses tratam bem os chineses. Eu gostava de criar uma ponte entre os dois países», diz Qi Chen, que faz questão de andar com um casaco do Oriental Dragon FC vestido.
Uma «Liga chinesa» para contornar as limitações regulamentares
O plantel é composto por 26 jogadores, entre os 16 e os 19 anos de idade. O recrutamento é feito através do coordenador, Carlos Gomes (ex-treinador do Benfica B), que faz várias visitas anuais à China, para falar com as famílias dos jovens e até com os clubes aos quais alguns estão vinculados.
Poucos são os jogadores do Oriental Dragon que já atingiram a maioridade, e que por isso não podem ser inscritos na Federação Portuguesa de Futebol. Para que estes jovens pudessem competir a empresa Wsport Seven decidiu criar uma Liga. Vulgarmente conhecida como a «Liga chinesa», a sua denominação oficial em 2014/15 é «Future Stars Football League». Primeiro foi organizada em parceria com a Associação de Futebol de Lisboa, mas entretanto passou para a Associação de Futebol de Setúbal.
Embora o Oriental Dragon FC só tenha jogadores até aos 19 anos, a «Liga chinesa» é uma prova sub-21. Disputada sobretudo a meio da semana, conta com a participação de mais treze clubes dos distritos de Lisboa e Setúbal, que muitas vezes aproveitam para juntar juniores a elementos da equipa principal que não foram utilizados nos campeonatos oficiais.
A «Future Stars League» tem um regulamento próprio e é levada muito a sério, inclusivamente no que diz respeito a árbitros e castigos. Um exemplo disso é a derrota aplicada na «secretaria» ao Belenenses, por inclusão na ficha de jogo de um treinador que estava castigado. Existem ainda prémios de participação e bónus para os primeiros classificados.
Nesta prova entram alguns emblemas cuja parceria com a Wsports Seven abrange também a inclusão de jogadores chineses nos seus plantéis juniores ou seniores. Estão sete jogadores no Sacavenense, três no Atlético do Cacém e no Real Massamá, dois no Cova da Piedade e um no Belenenses. O Sporting não entra na prova, mas tem dois chineseses: Zhang Lingfeng nos juniores e Liu Yiming na equipa B.
Na «Future Stars League», que tem prémios de participação e ainda um bónus para os primeiros classificados, é obrigatória a utilização dos jogadores chineses. Esse acordo não se aplica nos campeonatos «normais».
A barreira linguística (dentro de campo, mas não só)
Quer isto dizer que alguns jogadores chineses, os mais velhos, já estão inseridos nos quadros competitivos portugueses. Mas mesmo os mais novos, que ainda não podem ser inscritos, já lidam com o cenário mais exigente do que aquele que existe no país natal. E é por isso que, embora alguns jogadores estejam vinculados a emblemas chineses, esta experiência em Portugal é vista como benéfica.
«Lá é muito esporádico. Encontram-se de três em três meses e jogam intensamente durante uma semana, mas depois estão muito tempo sem jogar», explica o diretor-geral do Oriental Dragon.
Embora tenha também um trajeto enquanto treinador, inclusive na formação do Sporting, Mauro de Almeida está agora dedicado à vertente mais burocrática: tratar dos vistos dos jogadores, da alimentação, o pagamento das contas de água e luz, etc.
O treinador é Paulo Nunes, que lidera uma equipa vasta, que conta com Emanuel Pinheiro como adjunto, Guilherme Gomes e Daniel Gomes como preparadores físicos, Bruno Pedro como treinador de guarda-redes e ainda Paulo Ferreira como observador/vídeo-analista. Sem esquecer o massagista Cheng Long (são fiéis à medicina oriental) e um adjunto chinês (Liu Zaoxu) para ajudar a estabelecer a comunicação com os jogadores, ainda que para isso seja vital a presença do tradutor Vasco Caeiro.
A língua é mesmo a principal barreira, e por vezes até gera situações caricatas. «Acontece com alguma regularidade. Por vezes não conseguimos pronunciar o nome deles corretamente e eles riem-se, ou ao explicarmos um exercício dizemos algo parecido com uma asneira em mandarim», explica Paulo Nunes.
Depois de uma experiência na Arábia Saudita, na academia do Al Ahli, em 2012/13, o técnico português encara um novo desafio. «É uma experiência diferente, com um conjunto de barreiras, mas enriquecedor», explica Paulo Nunes ao Maisfutebol.
O técnico explica que «o futebol na Arábia Saudita já está mais enraizado e joga-se mais, até na rua». «A margem de progressão é elevadíssima, mas os jovens chineses não têm as mesmas vivências. Os quadros competitivos não estão tão organizados. Chegam aqui com poucos jogos, enquanto que os jovens portugueses chegam a esta idade já com muita competição», compara.
Paulo Nunes descreve o jogador chinês como alguém que «precisa de tudo muito organizado, de referências». «Nesse contexto é cumpridor. Se temos de adaptar coisas no momento, aí os treinadores passam mal. Lidam mal com tudo aquilo que não está pré-definido», complementa.
Projeto de meio milhão de euros
Os jogadores do Oriental Dragon têm um quotidiano idêntico ao de uma equipa de juniores de Benfica, FC Porto ou Sporting. Os treinos, que incluem trabalho de ginásio ou sessões de vídeo, são realizados no complexo do Real Sport Clube, de Massamá.
Bem perto do recinto está localizado o centro logístico do clube, uma vivenda onde vivem alguns dos jovens. Na cave, que dá para um pátio nas traseiras, fica a zona de refeições.
«Eles não gostam muito da nossa comida típica. Inicialmente tínhamos cozinheiros portugueses, mas eles não comiam nada», explica Mauro de Almeida, ao mesmo tempo que os jogadores «atacam» algumas pratos tradicionais chineses.
Nas paredes do espaço, junto a algumas folhas afixadas com os esquemas táticos da equipa, estão alguns cachecóis e galhardetes. Da seleção chinesa, claro, mas também de Benfica, Sporting, Vitória de Guimarães, Varzim ou Oeiras. Ao canto está um LCD, sintonizado na Sport TV, mas ao qual os jovens chineses pouco ligam. «Não ligam muito à Liga portuguesa. Adoram é a Liga dos Campeões», explica o diretor-geral. Ainda assim Rao Bin, extremo de 17 anos que é fã de Marco Reus, mostra simpatia pelo Benfica e destaca nomes como Gaitán e Júlio César. O emblema da Luz merece também a simpatia de Peng Junxian, o jogador com melhor domínio da língua portuguesa, que tem um brasileiro como ídolo: «Messi ou Ronaldo? Ronaldinho.»
Depois de almoço os jogadores do Oriental Dragon voltam ao complexo do Real, pois é lá também que têm aulas, através de um acordo entre a Wsports Seven e um colégio. «Até aos 18 anos são obrigados a marcar presença. Depois fica ao critério deles, mas gostam de vir à aula de línguas, para aprenderem português. É para interagirem», explica Mauro de Almeida.
«Quase todas têm namorada em Portugal, mas são todas chinesas», explica. «Não sabemos português e por isso não namoramos com portuguesas», explica Guo Tianyu, um avançado de apenas 16 anos que já terá despertado a atenção do Sporting.
Nos tempos livres os jogadores do Oriental Dragon aproveitam também para fazer visitas regulares à comunidade chinesa da Mouraria. À procura de produtos típicos ou até para cortar o cabelo. Cada jogador recebe entre 100 a 175 euros de mesada, para gastos do dia-a-dia. A alimentação e as contas de água e luz, entre outras coisas, são suportadas pela empresa Wsports Seven.
Tendo em conta estas verbas, e ainda os custos associados à organização da «Future Stars Football League» e as compensações dadas aos clubes que recebem jogadores, o projeto da Wsports Seven tem um orçamento de 500 mil euros para 2014/15.
Mas para a próxima época estão previstas alterações significativas, com a integração do Oriental Dragon FC nas competições seniores da Associação de Futebol de Setúbal. Algo apenas possível porque, entretanto, vários jogadores do plantel atingem a maioridade e passam a estar em condições de ser inscritos. Mas em todo o caso o plantel deixará de ser exclusivamente chinês, pois os regulamentos obrigam à inclusão, na ficha de jogo, de dez jogadores formados localmente.
Este é apenas um dos passos em perspetiva, para que a evolução dos jogadores chineses seja cada vez mais incentivada. E o projeto começa a dar frutos, com a convocatória de três jogadores para a seleção chinesa sub-18 e de um outro (Chen Zhechao, que está a representar o Sacavenense) para o Torneio de Toulon.
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